domingo, 11 de setembro de 2011

Dois séculos de terrorismo

O moderno uso da violência como arma política não é uma invenção do fundamentalismo islâmico ou do grupo de Bin Laden. A prática remonta à Revolução Francesa e foi assumindo diversas faces ao longo dos últimos 200 anos 

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por Osvaldo Coggiola
Há quem diga que vivemos hoje uma “era do terrorismo”. Artigos e livros são publicados, em profusão, analisando até a “filosofia” do terror. Em todas as áreas do conhecimento, surgem especialistas nas mais diversas modalidades do fenômeno: militar, bacteriológico, econômico, político, jurídico e até familiar. Eleito inimigo número um da civilização, no seu uso atual o termo designa uma atividade que seria um fim em si mesmo, desvinculado de qualquer outro objetivo que não o da sua própria execução. O dicionário #Aurélio# apresenta duas definições para o vocábulo. Segundo a primeira, terrorismo seria um “modo de coagir, ameaçar ou influenciar outras pessoas, ou de impor-lhes a vontade pelo uso sistemático do terror”. De acordo com a segunda, seria uma “forma de ação política que combate o poder estabelecido mediante o emprego da violência”.

Na contra-corrente de tais definições, alguns autores afirmam que o terrorismo não é senão a política auxiliada pela violência, de modo exclusivo ou não. De um modo geral, afirma-se que é uma tática de luta contra a ordem estabelecida, mas o próprio poder pode ser terrorista quando faz uso dos mesmos meios, a violência, para atingir seus fins. Com definição tão ampla, é possível detectar formas de terrorismo ao longo de toda a história humana. Os processos “contra a bruxaria” na Europa Moderna, que afetaram um milhão de pessoas entre 1484 e 1739 e espalharam um clima de denúncias, suspeição e terror por cidades e aldeias do Velho Continente, se encaixariam perfeitamente nessa categoria. Tais processos estão na origem da popular expressão “caça às bruxas”.

O conceito de “terrorismo” no seu sentido contemporâneo, porém, surgiu com a Revolução Francesa. O período compreendido entre setembro de 1793 e julho de 1794, caracterizado pela violência e as execuções utilizadas pelos revolucionários para enfrentar as forças da reação, deu origem ao termo, que apareceu pela primeira vez em 1798 no suplemento do Dicionário da Academia Francesa. A expressão passou então a ser utilizada para caracterizar o extermínio de pessoas de oposição ao regime e a violência promovida pela autoridade governamental instituída.

O “Terror”, em sentido político, ficou associado à revolução (democrática). Para Marx, “o Terror na França nada mais foi do que o método plebeu para acabar com os inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo, e o espírito pequeno-burguês”. Referindo-se à derrota da revolução de 1848 na Áustria, o pensador alemão afirmou que “os massacres sem resultados nas jornadas de junho e outubro, a fastidiosa festa expiatória em fevereiro e março, o canibalismo da contra-revolução, convencerão os povos de que para abreviar, simplificar e concentrar a agonia mortífera da velha sociedade só existe um meio: o terrorismo revolucionário”.



Na segunda metade do século XIX, o terrorismo foi associado à ação dos grupos anarquistas, também chamados de niilistas, que adotavam a violência como estratégia política e foram muito ativos tanto em paises europeus como em outros continentes. Não por acaso, a atividade terrorista foi especialmente importante na Rússia czarista, país marcado por uma forte opressão social onde o regime autocrático interditava toda ação ou expressão política.

O nível de repressão na sociedade russa era tamanho que nem mesmo as reformas promovidas pelo czar Alexandre II entre 1861 e 1865 foram suficientes para aliviar o clima de descontentamento de amplos setores sociais. Muito pelo contrário. As medidas que aboliram a servidão da gleba, criaram as câmaras municipais (zemstvos) e atenuaram a censura na imprensa e nas universidades desagradaram a todos: à nobreza porque tornou os camponeses "insolentes"; a estes, porque tiveram que se endividar para obter sua autonomia; e à intelligentsia, que considerou as reformas insuficientemente profundas.

Foi em meio a este clima de insatisfação que surgiu, entre as camadas esclarecidas da população, a primeira tentativa de derrubar o regime por meio de um movimento não-palaciano. Os populistas (narodniks, em russo), que batizaram seu movimento de "Terra e Liberdade", definiram o objetivo de convencer a massa rural a sublevar-se contra o czar.O fracasso dessa tentativa, e a repressão que se seguiu, levou-os a se embrenharem no caminho do terrorismo político. Acreditavam que abatendo as figuras exponenciais do regime czarista provocariam a rebelião popular. O Catecismo do revolucionário, escrito pelos russos Netchaev e Bakunin, se converteu em um breviário ideológico do terrorismo político. O revolucionário era definido como um morto em sursis, uma pessoa que já tinha renunciado à vida em prol da revolução, o que tornava “normal”, por exemplo, um atentado suicida.

A Rússia virou a pátria do terrorismo. O açoitamento dos presos políticos levou Vera Zasulich a expressar a indignação geral com um atentado contra o general Trepov. Seu exemplo repercutiu entre a intelectualidade revolucionária, desprovida do apoio das massas. O que começou como um ato de vingança perpetrado de forma inconsciente se transformou em um verdadeiro sistema entre 1879 e 1881. Assim como na Rússia, as ondas de atentados anarquistas na Europa Ocidental e na América do Norte também se produziram depois de alguma atrocidade cometida pelo governo, como fuzilamentos de grevistas ou execuções de opositores políticos. A fonte psicológica mais importante do terrorismo era o sentimento de vingança.


Já exilado por Stálin, Trotsky continuava a defender o uso do terrorismo em determinadas circunstâncias: “Nossos inimigos de classe têm o costume de queixar-se de nosso terrorismo. Eles gostariam de pôr o rótulo de terrorismo em todas as ações do proletariado dirigidas contra os interesses do inimigo de classe. Para eles, o método principal de terrorismo é a greve (...) Se por terrorismo se entende qualquer coisa que atemorize o prejudique o inimigo, então a luta de classes não é outra coisa senão terrorismo. E o único que resta considerar é se os políticos burgueses têm o direito de proclamar sua indignação moral acerca do terrorismo proletário, quando todo seu aparato estatal, com suas leis, polícia e exército não é senão um instrumento do terror capitalista”.

No mesmo texto, porém, Trotsky reafirmava a oposição do marxismo ao terrorismo individual: “Que um atentado terrorista, mesmo um que obtenha "êxito", crie confusão na classe dominante, depende da situação política concreta. A confusão terá vida curta; o estado capitalista não se baseia em ministros de estado e não é eliminado com o desaparecimento deles. As classes a que servem sempre encontrarão pessoas para substituí-los; o mecanismo permanece intacto e em funcionamento. Todavia, a desordem que produz um atentado terrorista nas filas da classe operária é muito mais profunda. Se para alcançar os objetivos basta armar-se com uma pistola, para que serve esforçar-se na luta de classes? Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir sua missão”.

Nas décadas do primeiro pós-guerra, o terror foi o principal método de ação do nazi –fascismo europeu, cada vez mais generosamente apoiado pelas classes empresariais, que pensavam assim se libertar do “fantasma do comunismo”. Na URSS “comunista” de Stálin, porém, um sistema de terror foi montado pela burocracia governante, que primeiro exterminou toda a velha geração bolchevique e, depois, toda manifestação de oposição política e social. Nas vésperas e durante a II Guerra Mundial, sistemas totalitários, baseados num verdadeiro terrorismo de Estado, varriam toda a Europa, desde a Espanha até a Sibéria. Era, nas palavras de Victor Serge, “meia-noite no século”.

A escalada de violência culminou com um ato terrorista inédito: em 6 de agosto de 1945 um bombardeiro norte-americano lançou sobre a cidade japonesa de Hiroshima a Little boy, a primeira bomba atômica da história. A explosão devastou 10 km²,, matou de imediato 100 mil pessoas e continuou por muito tempo a provocar formas inauditas de sofrimento humano, vindo a causar mais de 200 mil mortes. Estava inaugurada a era do “terror catastrófico”, e não precisamente por fanáticos do islamismo...



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(C) Rue des Archives

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No segundo pós-guerra, o terrorismo de Estado deixou de ser a exceção e passou a ser a norma em certas regiões do planeta. Foi praticado em larga escala, em primeiro lugar, nas colônias francesas em luta pela independência, como Madagascar e Argélia. Na grande mídia, porém, o vocábulo “terrorismo” foi reservado apenas para a prática das formações militares irregulares, pois o que para uma nação era terrorismo, para outras era luta pela liberdade. Os bascos do ETA, os irlandeses do IRA, os “peshmergas” curdos, os palestinos de Al Fatah, os argelinos da Frente de Libertação Nacional ou os tchetchenos, mais recentemente, foram todos considerados terroristas, inclusive quando claramente lutavam pela autodeterminação de seus povos.

Por outro lado, não se qualificava de “terrorista” a ação dos “contras” financiados pelos Estados Unidos, que não poupavam meios nem violência para provocar a queda dos sandinistas da Nicarágua. Tampouco era qualificada de terrorista a política que inventou, armou e treinou Saddam Hussein para trucidar curdos e iranianos ou que armou e financiou os fundamentalistas do Talibã para que fizessem atos de terror contra os soviéticos no Afeganistão. A lista é imensa e variada: Pinochet no Chile, Videla na Argentina, Noriega no Panamá, Papa Doc no Haiti, Sukarno na Indonésia, Ferdinand Marcos nas Filipinas... No esforço de contenção do “comunismo”, ou simplesmente das lutas de libertação nacional, o “terror” virava “luta pela liberdade”.

Com o fim da União Soviética e do “comunismo” enquanto realidade estatal, os Estados Unidos tiveram que achar um novo “perigo global” que justificasse seu intervencionismo mundial, presente desde os primeiros dias do segundo pós-guerra. Foi bem antes do fatídico 11 de setembro de Bin Laden que seus think tanks prepararam as bases ideológicas da “guerra global contra o terror”, como se lê num artigo publicado em 1998 pela Foreign Affairs, influente revista do Conselho de Relações Externas dos EUA: “O terrorismo não é um fenômeno novo. No entanto, os terroristas de hoje (...) atuam em função de um conjunto de motivos muito mais amplo do que ocorria no passado. Mais sinistro ainda é o fato de que os terroristas podem ter acesso a armas de destruição maciça, entre as quais dispositivos nucleares, disseminadores de germes, gases venenosos e mesmo vírus de computadores. Outro fator novo é a dependência de quase todo o mundo em relação a uma rede frágil e quase invisível de distribuição de energia e informações. Há muito presente no repertório de cenários arrepiantes, o terrorismo catastrófico deixou de ser um horror distante para tomar-se algo que pode ocorrer a qualquer momento. Embora ainda levem a sério o terrorismo convencional, como se viu pela reação aos ataques às embaixadas no Quênia e na Tanzânia em agosto, os EUA não se encontram preparados o suficiente para a nova ameaça representada pelo “terrorismo catastrófico”. A superioridade militar americana nos campos de batalha convencionais acabou obrigando seus adversários a buscar opções não convencionais”.



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Em 1999, um relatório do Instituto Internacional de Pesquisas sobre a Paz (SIPRI), de Estocolmo, na Suécia, identificava 27 confrontos armados no mundo, fruto de rivalidades étnico-político-geograficas “manipuladas por lideranças populistas locais”. Foram listados diversos movimentos terroristas, fruto de disputas separatistas, religiosas, geográficas e por outras motivações, ao todo 30 movimentos foram detectados nos vários continentes.

Mais recentemente, de modo inédito e adaptando-se à pressão norte-americana, a ONU definiu, oficialmente, uma política “anti-terrorista” mundial. Na resolução correspondente, de 2002, assinala-se que "terrorismo é, na maioria dos casos, um ato político. Tem como propósito provocar danos dramáticos e mortais sobre civis, e criar uma atmosfera de medo, geralmente por um motivo político ou ideológico, secular ou religioso. O terrorismo busca ser um assalto contra os princípios da lei, a ordem, os direitos humanos e a resolução pacífica das disputas, sobre as quais criou-se este organismo mundial. O terrorismo não é um fenômeno unívoco, deve ser entendido à luz do contexto no qual as atividades terroristas aparecem. O terror foi usado como tática em quase todos os cantos do planeta, sem distinguir riqueza, gênero ou idade de suas vítimas, na sua maioria civis”.

A definição da ONU, no entanto, não considera como atos terroristas os bombardeios maciços que os Estados infringem a populações civis "inimigas", como aconteceu, ou ainda acontece, na ex-Iugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Palestina e no Líbano,.Em torno da questão do terrorismo se livra hoje uma batalha ideológica e política aguda, de cujo resultado depende em grande parte o destino das nações e dos povos, ou seja: da própria humanidade.

Osvaldo Coggiola é professor de história contemporânea da Universidade de São Paulo e doutor em história comparada das sociedades contemporâneas pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, França







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