terça-feira, 4 de janeiro de 2011

ABRAPAM na Revista Galileu da Globo Editora

reportagem / armas

O rei do morro

Saiba por que o fuzil FN FAL é a arma preferida pela polícia, pelo exército e também pelos traficantes nos conflitos das favelas

Guilherme Rosa

Stefano Martini
Crédito: Stefano Martini

Numa manhã de domingo de novembro de 2010, mais de 2 mil homens do exército e das polícias federal, militar e civil cercaram o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A intenção das forças policiais era expulsar pelo menos 500 traficantes que haviam buscado refúgio na comunidade. A dos traficantes, fugir para montar seu esquema de crime em outro lugar. Em comum, os dois lados do confronto tinham só uma coisa: as armas que carregavam. O fuzil FN FAL (abreviação em francês para Fuzil Automático Leve), inventado por engenheiros belgas, pode ser considerada a arma símbolo da guerra do tráfico no Rio de Janeiro. Está nas mãos dos policiais militares, dos soldados do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Exército. Talvez por isso, seja também um dos mais procurados pelos traficantes, que o consideram um símbolo de status. “Entre os criminosos, ele é chamado de Pacificador”, diz o especialista em armas Carlos Gomes, instrutor chefe da Abrapam, empresa que oferece treinamento para forças de segurança. É como se ele falasse mais alto que todas as outras. “Quando se escuta seu disparo, as pessoas param e analisam se vale a pena continuar combatendo.”

Com quase cinco quilos, o FAL pode dar até 700 tiros por minuto e atingir um alvo a 900 metros de distância. “Se você levar um tiro a uma curta distância, provavelmente não vai nem sentir, tamanha a velocidade da bala”, diz Gomes. Sua munição é poderosa, de calibre 7,62 (o do fuzil AR-15 é 5,56), o que aumenta ainda mais o dano causado pelo disparo: dependendo da distância, ele pode arrancar a perna de um homem. “Se uma pessoa for atingida a uma distância de 150 metros, a bala vai fazer um rombo de entrada do tamanho de uma bola de pingue-pongue e um de saída do tamanho de uma laranja”, diz o instrutor. Todo esse poderio, na verdade, foi projetado para ser usado apenas em zonas de guerra, não no meio de uma cidade, o que ajudaria a explicar o alto número de atingidos por bala perdida no Rio de Janeiro — só no primeiro semestre de 2010, 84 pessoas foram vítimas de disparos sem autor conhecido. “Um tiro de FAL é capaz de atravessar uns 15 barracos.” 
Pablo Jacob/Extra
Crédito: Pablo Jacob/Extra


O BRAÇO DA LIBERDADE

Logo após a Segunda Guerra Mundial, engenheiros da companhia bélica belga Fabrique Nationale, a FN, começaram a desenvolver armas que pudessem fazer frente aos fuzis que os soldados alemães usaram durante os combates. Em 1953, a companhia lançou na Bélgica os primeiros modelos do FN FAL, combinando munição potente com grande volume de fogo. O exército da Inglaterra passou a usar a arma em 1957. A partir daí, foi questão de tempo para vários outros países, entre eles Israel, Argentina e Alemanha ocidental, usarem também. “Foi considerado o melhor fuzil da época, adotado por mais de 70 países e produzido em pelo menos 10 deles”, diz Alexandre Beraldi, especialista em armas leves.

A arma ficou comum em grande parte dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, organização militar internacional que, à época da Guerra Fria, reunia países alinhados aos Estados Unidos (hoje ela define a política de segurança dos países europeus e da América do Norte). Por conta dessa participação nas forças ocidentais, o FAL ficou conhecido como “O Braço Direito do Mundo Livre”. Na mesma época, a União Soviética desenvolveu o AK-47, fuzil de mesmo calibre que acabou usado pelos países comunistas — e que hoje concorre com o FAL entre a arma mais desejada do morro. Do mesmo jeito que Estados Unidos e a então União Soviética se estranhavam para ver quem dominava o mundo, as armas adotadas por cada lado disputavam a supremacia nos campos de batalha (veja quadro ao lado). “O AK-47 é uma arma muito mais resistente, que suporta operações mais pesadas. Um fuzil barato, fabricado em larga escala, mas de forma praticamente artesanal”, diz Carlos Gomes. Por conta dessas características, a arma russa passou a ser adotada por muitas guerrilhas e organizações criminosas ao redor do planeta, como os resistentes da Guerra do Vietnã e atuais integrantes do Talibã no Afeganistão. No Brasil, o FAL chegou em 1964, quando o governo brasileiro fez uma concorrência para substituir os fuzis alemães usados pelo exército, que já estavam ficando para trás. O belga acabou sobrepujando dois concorrentes: o M-14 americano e o Heckler und Koch G-3 alemão. O AK-47 nem participou da disputa. A nova arma passou a ser produzida pela Indústria de Material Bélico do Brasil (IMBEL), em Itajubá, no sudeste de Minas Gerais, e foi adotada pelas Forças Armadas do País. 
Agência O Globo
Guerra no Rio: durante as operações na Vila Cruzeiro, agentes da Polícia Militar carioca portam fuzis FAL


DA TRINCHEIRA PARA O MORRO

Ainda que seja de uso exclusivo das forças de segurança, não é raro a polícia encontrar o FAL em poder de criminosos. Para que esses últimos coloquem suas mãos nele, há uma rede de ilegalidades. A arma pode ser desviada pelos próprios agentes militares e negociada no mercado negro, que também é abastecido por nossos vizinhos. “Cerca de 80% dos FALs vêm do contrabando: são colocados em pequenos aviões e deixados em pontos estratégicos, onde são recolhidos por caminhões”, diz Carlos Gomes. Um carregamento de armas desse tipo pode ter até 200 fuzis vindos da Bolívia ou do Paraguai, por exemplo. Pouco antes dos confrontos no Morro do Alemão, a polícia interceptou um caminhão que levava 20 mil cartuchos 7,62, o tipo usado no fuzil, para os traficantes da região.

Quanto mais difícil de chegar ao destino final, mais alto é o seu preço. No mercado negro, o FAL custa a partir de R$ 20 mil. Mas o preço vem subindo com a repressão maior ao tráfico de armas no País e pode chegar a R$ 70 mil. No mercado legal, o fuzil custa entre R$ 4 mil e R$ 5 mil, descontados os impostos. Como resposta, traficantes começaram a assaltar delegacias para conseguir um fuzil só seu. Foi o que aconteceu em março de 2010, quando três fuzis foram levados em um assalto a uma base da Polícia Militar no bairro carioca de Anchieta. “Já aconteceram vários casos de roubos de armamentos em unidades militares. Felizmente, o número não chega a ser tão significativo, já que o saldo desses roubos é, no máximo, seis armas”, diz Carlos Gomes, sobre a média da quantidade de fuzis do tipo presentes em uma delegacia.

A tendência mundial, no entanto, é que a fabricação — e consequentemente o uso — dessas armas de calibre de guerra seja reduzida daqui em diante. A Organização das Nações Unidas (ONU) e diversos órgãos de defesa dos direitos humanos fazem pressão contra seu uso por conta dos danos que são capazes de causar não só em termos de mortos, mas de ferimentos aos sobreviventes. No Brasil, desde 1982 o exército estuda substitutos. “A IMBEL tem desenvolvido projetos de fuzis de assalto de calibre menor com o objetivo de substituir o FAL como o MD-2, o MD-97L e o novo IA2, desenvolvido em 2010. Mas nenhum deles foi adotado”, diz Alexandre Beraldi. Por enquanto, a quantidade de armas em poder de criminosos mostra que o FAL ainda continuará falando alto nos morros cariocas.

Revista Galileu


Vale ressaltar que a ABRAPAM ministra cursos regularmente à Guarda Portuária do Rio de Janeiro.

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