terça-feira, 13 de dezembro de 2011

É HORA DE LIMPAR A POLÍCIA

Uma das vozes mais lúcidas na área de seguraa pública, o sociólogo Claudio Beato alerta: "Os marginais de farda são ainda mais perigosos do que os traficantes"

O sociólogo mineiro Cláudio Beato, 55 anos, tem se destacado como umdas mais sensatas vozes no debate dáreà qual se dedichá mais deduas décadas, a segurapública. Gosta de ir a campo parconhecer as experiências bem-sucedidas. Já passou temporadas nColômbia, no México e, mais recentemente, nos Estados Unidos, como professor visitante nUniversidade de Harvard. Coordenador do Centro de Estudos de Criminalidadee Segura, PúblicdUniversidade Federal de Minas Gerais, nos últimos tempos Beato tem se dedicado a compreender as milícias (quadrilhas formadas por policiais e ex-agentes), fenômeno brasileiro com contornos próprios no Rio, onde esses bandos dominam vastos territórios espalhando o terror sob o abrigo dfarda.
 Há um clima de otimismo em relação às conquistas obtidas no Rio de Janeiro contra o crime organizado. Ele se justifica?
Devolver ao estado e aos cidadãos o domínio, sobre territórios há décadas subjugados pelo crime é um avanço inquestionável, e quem vive nessas favelas sabe disso melhor do que ninguém. Mas é preciso pôr a ocupação das favelas do Rio sob umperspectivmais realista, dando ao feito adimensão correta. Trata-se de um passo a ser festejado, um último ponto de partida, mas não mais do que isso. Parfazer o crime refluir de verdade, será necessário mexer em pontos nevrálgicos, antigos nós dsegurapúblicf1uminense aindpor desatar.
 Que nós são esses?
É preciso empreender umfaxinnpolícido estado, que figurentre as mais corruptas do país. A podridão não se limitàs bases dcorporação, mas está entranhadnos mais altos escalões. A descoberta de que o mentor do assassinato de umjuízerum tenente-coronel envolvido com grupos de extermínio ou a saíddo país de um deputado sob ameaça de milícias são dois estarrecedores episódios que expõem o problema de formainequívoca. A limpezninstituição deve ser implacável. Afinal, as quadrilhas formadas pelos bandidos de farda, esses que compõem as milícias, são, ameu ver, o maior mal a ser combatido náredsegurapúblic- um fenômeno brasileiro que ganhcontornos próprios no Rio de Janeiro.
O senhor está dizendo que as milícias são tão ou mais nocivas do que o próprio tráfico?
 Isso mesmo. Assim como o tráfico, elas dominam bairros inteiros. Torturam, matam e expulsam as pessoas de suas casas. Infiltram-se também no diaa didos cidadãos, explorando serviços essenciais como transporte coletivo, águe gás. Mas são aindmais perigosas porque seus líderes operam dedentro dpolície se mantêm ali quanto podem, galgando postos nhierarquie evitando que os próprios crimes sejam investigados. Ou seja, eles têm poder no mundo formal. Desfrutam de amplinserção no meio político. Graças a esse caráter camaleônico, esses bandos acabam sendo vistos por muitgente como um mal menor até aceitável. Um absurdo. As milícias são o que há de mais parecido no Brasil com as máfias italianas. E tudo indicaque conquistarão aindmais território e poder.
 O que o faz acreditar nisso?
 tendência é que, com o enfraquecimento do tráfico, que perdeu recentemente alguns de seus QGs, as milícias comecem a assumir também o comércio de drogas. Aqui e ali, já surgem sinais de que esstransferênciestá em curso. Se isso se concretizar, teremos o pior de todos os cenários. Vejo que ocorreu ndécada de 90 em Medellín, nColômbia. Os paramilitares, saudados então como solução no combate do narcotráfico, acabaram por se tornar, eles próprios, os chefões do crime organizado. Tomaram o controle das favelas e implantaram seu próprio regime de terror. Nesse período, os índices de criminal idade foram às alturas. Em situação-limite, a sociedade colombianse sentiu compelida a agir.
 O que se pode aprender com o caso colombiano?
As coisas só começaram a mudar nColômbiquando se deixou de escamotear o problema. O estado empreendeu então umprofunde corajosadevassnpolícia, seguida de amplreforminstitucional, com iniciativas para atrair e incentivar os bons agentes e tolher às más práticas. Foi um processo demorado, que compreendeu reciclagem profissional, contratação de novos quadros e aumento nos salários. Até o código de processo penal colombiano passou por ajustes parque a apuração dos crimes pudesse ser mais célere e eficaz. Cerca de 20% dcorporação acabou banida, iniciativque foi a base partodos os outros avanços que se seguiram. O caso colombiano reforçtambém a importância de umforça-tarefnacional, com diversos poderes e aadas guiados pelas mesmas metas.
 É possível reproduzir a experiência no Brasil?
Umboa articulação entre as polícias não só é possível como absolutamente necessáriparobter avanços náredsegurapública. No caso do Rio, está claro que, por mais competente que sejo secretário José Mariano Beltrame, ele não conseguirá extirpar o tráfico, tampouco as milícias, sozinho. Estamos tratando, afinal, de organizações criminosas com tantos tentáculos institucionais que só mesmo uma ação sincronizadnos moldes dOperação Mãos Limpas italiancom a participação dPolíciFederal do Ministério Público e dprópriJustiç- pode abatê-las. A recente prisão do chefe dgangue dRocinha, o Nem, enfatizessideia. Talvez elnão tivesse acontecido de formtão célere se a PF não entrasse em cena. É amesmPF que deve vigiar as fronteiras parque armas e drogas não sejam infiltradas no país, chegando sem grandes obstáculos às favelas brasileiras. O ideal é que o Brasil unifique as polícias Civil e Militar. Trata-se de temespinhoso, mas precisser encarado de umvez por todas porautoridades com visão de longo prazo.
 Por que unificar as polícias é tão crucial?
É vital parobter ganhos de eficiência. Nas grandes economias do mundo e em países da AméricLatina, já funciona assim. O Brasil é um dos poucos que têm duas polícias amando de formindependente e aindpor cimcompetindo entre si. Pellei, cabe à PolíciCivil investigar e à Militar, fazer o policiamento ostensivo. Só que nprática as atribuições se sobrepõem. Afinal, onde começa a investigação e acaba a vigilância? Prender um criminoso em flagrante não seriumetapdo trabalho de investigação? Os conflitos que decorrem daí só prejudicam a apuração dos crimes. A ineficácia éespantosa: ngrande maioridos estados, não mais do que 15% dos homicídios são elucidados. É preciso também reformular o Código Penal. que tornos inquéritos peças jurídicas tão arcaicas quanto ineficientes. Nosso arcabouço institucional aindtem muito a ser melhorado.
 Quais são os indicadores que apontam para a inoperância de nossas polícias?
Segundo o último ranking divulgado pelo Fórum Econômico Mundial a respeito dsolidez das instituições, a polícibrasileira é pior do que a de 65 países. Como as pessoas não confiam ncorporação, não comunicam os crimes de que são vítimas. Isso se repete em todo o Brasil, mas. no Rio, asituação é mais grave. No lugar de prestar serviço à população, a polícifluminense tornou-se tão temidquanto os próprios bandidos. Elmatmuito. Mais precisamente, 6,98 pessoas parcadgrupo de 100 000 habitantes, de acordo com o último dado disponível. Em São Paulo, esse mesmo índice éde 1,07. Em Minas Gerais, 0,27 e, nos Estados Unidos, 0,12. A polícido Rio é também a que menos solucioncrimes no Brasil.
 Como chegamos ao ponto de bandidos ostentarem armas à luz do dia sem ser incomodados, como ainda se vê em morros cariocas?
conivêncidpolície dos políticos ajuda a explicar essa aberração. Foram décadas até que se chegasse a tal situação. E não foram poucas as chances de interromper o processo. Assim como em outras grandes cidades que passaram por flagelo semelhante, como Los Angeles ou Bogotá, ahistóriteve início quando as gangues que atuavam nas favelas cariocas começaram a se organizar dentro das cadeias. ndécada de 80. Surgiram aías facções criminosas aindhoje em atividade. O mesmo se deu em São Paulo, com o PCC. e em outras cidades do país, em menor escala. Mas só mesmo no Rio, onde a promiscuidade entre a polície a bandidagem se manifesta de formmais pronunciada desde a erdos grandes bicheiros, os criminosos encontraram um ambiente tão favorável. Isso permitiu que evoluíssem paro absurdo que é o domínio de porções dcidade pelos marginais. Quando contei a um amigo americano que me visitou recentemente sobre os avanços no Rio, ele indagou: "Deixe-me ver se entendi. Vocês tinham áreas inteiras dominadas por traficantes e nunchaviam feito nada a respeito?". Ele está certo. O mais espantoso é que o estado tenhademorado tanto a agir.
 Os últimos relatórios sobre a violência no país mostram que o Sudeste deixou de ser a região onde mais se registram assassinatos, posto que ocupou por décadas. O recorde agora é do Nordeste. A que se deve essa mudança?
explosão dcriminalidade no Sudeste levou a um relevante aumento de investimentos dos governos estaduais nárea de seguranos últimosanos. Junto a isso, começaram a aparecer alguns sinais de gestão mais moderna; com o dinheiro sendo aplicado de formmais eficaz que o usual. São Paulo, um dos estados brasileiros onde a taxa de homicídios mais caiu, é um bom exemplo. Constituiu-se ali umbase de dados comum às duas polícias. e as estatísticas passaram a subsidiar ações bastante objetivas de combate ao crime nos locais de maior incidência. Também se apostou muito nqualificação de pessoal e no estabelecimento de metas bem definidas de redução dcriminalidade, com bônus previstos paros agentes quealcaam os melhores resultados.
 E o que explica a escalada de homicídios no Nordeste?
Os estados nordestinos seguiram rumo inverso ao do Sudeste. Os investimentos minguaram, e a polícifoi sucateada. Com exceção de Pernambuco, que tem progredido, as corporações estão desaparelhadas, destreinadas e prescindem de estatísticas confiáveis que permitam umestratégiaeficiente para a prevenção de crimes. Não se dá prioridade à área de segurapúblice aindse adotpor lá um discurso falacioso segundo o qual o recrudescimento do crime sericonsequênciinevitável do crescimento econômico. Umgrande bobagem.
 Não há especialistas que sustentam justamente o contrário, argumentando que é a pobreza o grande motor da criminalidade?
Trata-se de outro argumento de cunho ideológico, que não encontrnenhum respaldo nrealidade. Hoje dispomos de estatísticas de sobra a indicar que nem todo lugar pobre é violento. O que os estudos mostram, isso sim. é que não há lugar violento que não sejmuito pobre, com elevados índicesde gravidez na adolescêncie de desemprego entre os jovens.
 O que se pode extrair da experiência desses lugares mais pobres?
Está provado que onde há redes de controle social fortes - como associações e ONGs a criminalidade arrefece. Um dos programas mais bem-sucedidos nesstarefa, que começou no início dos anos 2000, é o FicVivo dprefeitura de Belo Horizonte - inspirado, por suvez, no sucesso dexperiência deBoston nos anos 80. O primeiro passo foi prender os lideres das gangues que os levantamentos indicavam ser responsáveis pelescalada deassassinatos. Depois, abriram-se as escolas no fim de semane promoveram-se atividades culturais e de formação profissional. Resultado: os homicídios ncapital mineirjá caíram pelmetade desde 1998. Mas cabe aqui umressalva. O importante nesse em outras iniciativas foi fazer com que o estado atuasse em conjunto com a sociedade. Sozinhas, as ONGs sempre correm o risco de ficar acuadas e até ser cooptadas pelo poder do tráfico. Foi o que se viu no infeliz episódio em que um líder comunitário dRocinha acabou flagrado vendendo fuzil, mais um escândalo.
Fonte: Revista Veja - Edição 2247 - 14 de Dezembro

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